O Rock 'n' Roll no Mercado
Sebastião Buck Tocalino, 7 de abril de 2014
Com um pequeno pé de meia e nenhum conhecimento, eu sempre me sentia inseguro ao questionar um gerente de
banco sobre aplicações financeiras. Não era culpa deles. Na verdade, eles não estavam ali para me educar, o
trabalho deles era vender os produtos que melhor atendessem aos interesses do próprio banco. Mais velho e
escolado, percebi que eles também pouco sabiam além do manejo de uma calculadora financeira. Se não
bastassem as pressões e metas do banco, e a quantidade de gente para atender, eles provavelmente se sentiam
tão desconfortáveis quanto eu no assunto!
Mas a importância de investir me parecia cada vez maior. Afinal, as horas do dia e da semana impõem um
limite para nossa própria produtividade. Para obter renda maior do que o nosso esforço individual nos
permite, os investimentos são a saída. Pode ser em um negócio próprio (onde agregamos o trabalho de outros
para aumentar nossa renda) ou em aplicações financeiras. As aplicações nos dão a chance de participar de
negócios criados por outros (adquirindo ações de empresas), ou receber algum juro, em troca de permitirmos
que nossas economias financiem a construção civil, os empreendimentos privados e o orçamento das atividades
do governo (poupança, renda fixa, crédito privado e títulos públicos).
Em 1998, venci a inércia e comprei um livro do
Motley Fool, em inglês, sobre ações. A abordagem era
simples, basicamente fundamentalista e muito bem humorada. E por que não? Nos anos 1990s, bastava uma
estratégia para lucrar com ações: compra-las! E muita gente jovem ganhou dinheiro e se acreditou
expert no assunto (mais ou menos como no Brasil entre 2003 e 2008). Mas, ainda com um pé atrás na
época, eu decidi explorar a internet e procurar mais informações. Foi minha primeira experiência como
internauta. Vi que era bem mais fácil aprender sobre o mercado americano do que o brasileiro, além disso, o
único livro que eu havia lido fora em inglês. Olhei vários gráficos históricos de ações que alguns sites
norte-americanos disponibilizavam.
Duas coisas me chamaram a atenção na ocasião: aquela alta parecia já bastante esticada, e se o mantra era
comprar na baixa para vender na alta, o momento talvez fosse melhor para venda, e não compra. Outra coisa
que me incomodava era o crescente rumor sobre o
bug Y2k. O
bug do milênio! Havia o
receio de que o ano 2000 traria problemas para os computadores das instituições financeiras. Bastaria uma
quantidade suficiente de temerosos para que as ações caíssem antes da virada do século. Até então, os
computadores registravam o ano com apenas dois dígitos (ex: "99" para 1999). Caso não fossem reprogramados
rapidamente, seus sistemas entenderiam que "00" seria o ano de 1900, e não 2000. Uma curiosa falta de visão
de longo prazo dos programadores anteriores! Graças a muitos indianos, trabalhando à distância e a um custo
bem menor, as alterações nos sistemas foram feitas em tempo de se evitar o vexame. A Índia provou de forma
competente que serviços também podiam ser exportados de um país para outro, não apenas produtos
manufaturados. Uma grande vantagem obtida com aquela febre das ações
ponto.com foi a rápida expansão
mundial de linhas de conexões de internet. Houve um intenso "cabeamento" do mundo que possibilitou e
barateou esses serviços! O
bug Y2k não se materializou. Os temerosos foram insuficientes para
causar uma queda no mercado antes do final de 1999. Mas minha primeira observação estava correta. O mercado
de ações já tinha subido muito, e logo recapitulou.
Mal havia virado o ano (fevereiro de 2000), e o Dow Jones começou a se ressentir. Em abril, foi a vez da
NASDAQ recuar forte. E, só em setembro, o S&P500 se solidarizou. O setor que mais sofreu foi o de tecnologia
e internet. O estouro da bolha de tecnologia (ponto.com) levou o índice NASDAQ a recuar 80% em 2 anos e
meio. O S&P500 perdeu 50% do seu valor em mais de 2 anos. E O Dow Jones retraiu cerca de 40% em quase três
anos. Isso em preços nominais, já que em valores reais as baixas foram ainda piores. Eram anos
desanimadores.
Apesar de toda a minha vontade e interesse em investir em ações, minha primeira atitude sensata foi não me
deixar levar pela bolsa em 1999, quando a alta já durava tanto tempo. Evitei prejuízo e um trauma.
Só no início de 2003 firmavam-se os sinais de que a baixa havia se esgotado. Foi naquele ano que um grande
amigo me introduziu aos princípios da análise técnica de ações, também chamada análise gráfica. Um ponto em
que o Cláudio insistia era "não se case com nenhuma ação". Fazia sentido! Depois de quase 3 anos de mercado
caindo, haveria 'divórcio litigioso' e/ou um grande desgaste emocional e financeiro. Mas o conselho dele ia
contra aquilo que alguns diziam: "compre e esqueça". Anos mais tarde, fui testemunha dessa imprudência:
algumas pessoas me procuraram para saber se suas antigas e amareladas cautelas de ações ao portador ainda
valiam qualquer coisa. Certamente que, se nada mais, valiam pela lição: nunca compre e esqueça! (mas, se o
leitor conhece alguém nessa situação, vale a pena conferir
aqui
antes de desanimar)
Enquanto escrevo essas linhas, já se passaram seis anos desde os 73.920 pontos do Ibovespa, sem que o índice
tenha conseguido se recuperar. De maio de 2008 até hoje, a desvalorização nominal é de 31%. Se computássemos
também a inflação nesses seis anos, a mordida seria bem maior em termos reais!
Mas, se seis anos não são suficientes para quem diz que ação é para um horizonte de tempo maior, talvez uma
revisão de um século inteiro seja mais ilustrativa. E, se o objetivo dos investimentos é aumentar nosso
poder aquisitivo, não faz sentido omitir a inflação nessa retrospectiva. (Aliás, aqui vai minha sugestão: os
provedores de sistemas e programas gráficos deveriam nos dar sempre a opção de visualizarmos os gráficos
históricos em valores reais, ou seja, ajustados pela inflação!)
No gráfico abaixo, veja o desempenho
real do índice Dow Jones entre 1914 e 2014. Em poder aquisitivo
já corrigido pela inflação.
Observe que, coincidentemente, após ambas as crises de 1929 e de 1966, quase trinta anos se passaram até que
o valor real do índice Dow Jones voltasse aos níveis anteriores. Três décadas corridas! Isso era uma vida
inteira de trabalho para aquelas gerações! Que tal esse panorama para quem acha que, na queda, o melhor é
fechar os olhos para o prejuízo e confiar no longo prazo?
Com esse histórico em vista, fica claro o incentivo para tentarmos compreender os ciclos do mercado com
alguma antecedência. Evitaríamos prejuízos e potencializaríamos os lucros. Não é à toa que tantos se lançam
a essa cruzada, na busca pelo Santo Graal dos investimentos. Interpretar com sucesso as forças e os sinais
do mercado financeiro seria o toque de Midas! A alquimia capaz de transformar qualquer investimento em uma
fortuna. Pena que é bem mais fácil enxergarmos as idas e vindas da economia através do retrovisor!
Na física, fala-se do "princípio de Cachinhos Dourados". Uma alusão ao conto infantil, onde a pequena
intrusa na casa da família urso nota que certas coisas são quentes ou desconfortáveis demais para ela
(mingau, poltrona e cama), enquanto outras são frias e macias demais, até que ela encontra o meio termo
ideal. Na astronomia isso se refere, por exemplo, à distância entre a Terra e o Sol, permitindo temperaturas
onde nem toda a água do planeta se evapora, nem permanece congelada e sólida. Esse meio termo teria
possibilitado a formação de uma sopa primordial, onde surgiria a primeira forma de vida, conforme a
entendemos. No comportamento dos preços de bens e serviços, também notamos esse caprichoso princípio dos
Cachinhos Dourados. Tanto a deflação como a inflação são empecilhos para o desempenho econômico e o bem
estar. Por isso, resolvi mostrar no gráfico, de forma subjacente e independente, também os surtos de
deflação, reflação, inflação, desinflação e estabilidade dos preços ao consumidor nos EUA. (saiba mais sobre
inflação aqui)
-
Deflação, ao contrário da inflação, é quando os preços de bens e serviços caem. A circulação
de dinheiro diminui e este ganha maior poder de compra.
-
Reflação é uma redução na taxa de deflação, quando a queda na circulação do dinheiro começa a
diminuir e se desacelera a queda dos preços.
-
Inflação é o aumento no suprimento de dinheiro, desde que acompanhado pela perda generalizada
do poder aquisitivo da moeda. Bens e serviços ficam progressivamente mais caros.
-
Desinflação é a desaceleração ou moderação no aumento dos preços e da quantidade de moeda
circulante.
-
Estabilidade de preços geralmente é um período de inflação estável e baixa, mas pode ser
também de pequena deflação.
Os piores períodos para a economia e o mercado de ações são aqueles de crescente inflação ou deflação. Não
por mero acaso. Qualquer dos dois cenários gera desestabilização econômica e estresse financeiro. À medida
que o ambiente se agrava, cada vez mais gente acaba por vender seus ativos, na percepção ou no receio de uma
piora das condições futuras. Mas em muitos casos, isso se dá simplesmente pela necessidade de usar o
dinheiro para outros fins e compromissos. A pressão de venda supera a de compra. Isso gera efeitos na
valoração das ações e seus múltiplos, como as relações preço/lucro (P/L = preço da ação dividido pelo lucro
por ação). Tanto na deflação de 1930, como na inflação dos anos 1970, o P/L das ações caía (falaremos desse
indicador em outra ocasião).
Vejamos então a relação entre ambos os gráficos:
O final da década de 1920 apresentava uma estabilidade de preços bastante estranha aos nossos olhos. Ocorria
uma deflação pequena e constante. Sem grandes surpresas nos preços, esse período permitiu que as ações
subissem e mais do que dobrassem de valor em poucos anos. Mas o trágico crash veio em outubro de 1929. Com o
pânico instalado na bolsa, a deflação ganhou ainda mais força. Isso retroalimentava o desespero financeiro e
desvalorização das ações.
Em 1933 iniciou-se um processo reflacionário dos preços ao consumidor norte-americano, o que possibilitou
uma alta das ações. Já a década de 1940 foi marcada por movimentos alternados entre inflação e desinflação,
deixando o mercado como uma barata tonta depois de um par de chineladas. A inflação aumentaria mais? A
desinflação se transformaria novamente em deflação? Sem segurança, mesmo acabada a II Guerra Mundial, a
década não gerou ganhos nem perdas reais expressivas.
Nos anos 1950s, a desinflação prevaleceu e permitiu que o Dow Jones mais que dobrasse seu valor real. Ao
alcançar uma estabilidade na primeira metade da década de 1960, o país continuou se beneficiando com a
valorização das ações - que subiram mais 50% até 1966.
Entretanto, os últimos anos da década de 1960 e toda a década seguinte seriam chacoalhados pela inflação.
Nixon havia terminado de vez com o padrão ouro do dólar em 1971. Em valores nominais o mercado parecia
ziguezaguear de lado por muitos anos. Mas, levando-se em conta a inflação, o prejuízo foi sério. A queda do
poder aquisitivo devorou 70% do valor real do índice. Do capital imobilizado durante uma década e meia, só
restava cerca de 30%. Outra década e meia seriam necessárias para que, em 1995, o poder aquisitivo de 1966
fosse reestabelecido. 29 anos e? Um empate!
Iniciado em 1982, e acelerado entre 1995-1999, um impressionante touro de mercado altista (Bull Market)
ocorreu por razões importantes. Predominantemente, devido à mudança no perfil demográfico e a desinflação da
inflacionada década anterior, que permitiriam uma nova e longa estabilidade dos preços ao consumidor.
Como a economia é um sistema emaranhado de feedbacks positivos e negativos, e sem querer desmerecer a
política de juros de Paul Volcker, acredito que mesmo a desinflação e a estabilidade de preços tenham sido
produtos da própria demografia norte-americana. O principal fator positivo seria a gigantesca geração de
Baby-Boomers que avançava para faixas etárias mais maduras e produtivas.
Via de regra, os filhos aumentam bastante os gastos dos pais, mas pouco ou nada contribuem para a renda
familiar. Geralmente, suas contribuições são mais notáveis em pequenas propriedades rurais ou pequenos
negócios familiares. Até ingressarem no mercado de trabalho, esses jovens consomem mais do que produzem.
Consumo maior do que produtividade gera uma pressão de demanda sobre a oferta. É a fórmula básica da
inflação de demanda. Fica fácil deduzir que uma imensa geração jovem, fora dos padrões anteriores, teria
propiciado um surto de inflação!
Repare bem no período central do gráfico seguinte, mostrando jovens de 21 anos e os ciclos de inflação:
A Primeira Guerra Mundial (1914 a 1918) e a Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945) deixaram seus efeitos na
inflação. Mas é possível observarmos uma flagrante relação entre o comportamento dos preços e a quantidade
de jovens de 21 anos.
Até hoje, o ano de 1961 mantém o recorde absoluto em número de nascimentos ajustados para imigração nos EUA.
No gráfico acima podemos ver essa gigantesca onda de nascimentos deslocados 21 anos à frente. Aqueles jovens
dispendiosos se emancipariam.
Em 1982 a economia recebia dois importantes empurrões demográficos para reagir forte:
-
Esgotara-se o crescimento da população jovem de 21 anos. Agora eles participariam na economia
de outra forma. Produzindo e inovando, em vez de somar gastos para a geração de seus pais.
-
Embora o Baby-Boom seja mais relacionado ao fim da II Guerra Mundial, de fato, a tendência
de aceleração de nascimentos havia se iniciado em 1934. Isso significava que, de 1982 em diante,
seriam os adultos de 48 anos que passariam a ser cada vez mais numerosos. Uma população cuja
alta produtividade se estenderia ainda por muitos anos, porém deixaria para trás os crescentes
gastos com os filhos que atingiam a idade adulta e se emancipavam.
A partir de 1982, a alta produtividade daqueles primeiros bebês (nascidos em 1934) e a chegada ao mercado de
trabalho dos últimos
Baby-Boomers (de 1961) salvariam os EUA da crise inflacionária dos anos 1970s.
(para saber mais, veja
aqui e
aqui.)
O surgimento da
pílula anticoncepcional, no início da década de 1960, colocara um fim à explosão de
nascimentos. Mas aquela numerosa geração de jovens, que desbravaria a produção dos computadores pessoais e
já se manifestava contra a guerra do Vietnam, mudava a história da música e do mundo. Nas apresentações de
seus ícones roqueiros em agosto de 1969, eles pregavam "faça amor, não faça a guerra". The Who, Jefferson
Airplane, Ten Years After, Jimmy Hendricks, Santana e outros celebraram em Woodstock uma revolução criativa.
Mais tarde, aqueles jovens trariam também suas contribuições para a desinflação, a tecnologia da informação
e o
boom na bolsa de valores!
Rock 'n' Roll é isso aí: balança e vira tudo! Prosperidade, paz e amor para você também!